sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Bem-vindo, Verão

O CALOR VERDADEIRO É AQUELE QUE TE AGRIDE. Estou sendo atacado de todos os lados por essa força impiedosa e intransigente. Não adianta ventilador, ar condicionado, banheira de gelo. Ele está por toda parte, por que Ele é onipresente e onipotente. O calor me atinge como concreto arremessado na barriga. E dói, como dói!

A boca do estômago está com gosto de fel e o leite azeda no caminho da geladeira à mesa. O ovo frita instantaneamente na queda entre casca e asfalto. Assim não dá. Meu nariz sangra ao pensar em garotas de biquíni e, durante a madrugada, a hemorragia vem da secura do verão sem fim. O suor não escorre da minha testa, escorre de outros suores, e quem dera fossem somente meus. Os fluidos corporais das pessoas estão se propagando para todos os lugares e não somem, ficam impregnados. É impressionante. Na academia, por exemplo, as paredes estão suando – ou chorando.

Assim não dá. Adoro o Verão, estava até contando os dias para o início do mesmo junto com uma página de Facebook do Rio de Janeiro, e quero, inclusive, que ele fique mais que três meses conosco, contudo está faltando um pouco de discrição por parte dele. Desde o solstício que não durmo direito. O ventilador faz muito barulho, atrapalha o sono. Desligo. O calor me ataca mais rispidamente. Acordo. Ligo o ventilador. Não durmo. Sinto calor, porque desliguei o ventilador mais uma vez. O sol nasce. É implacável demais.

Alguém, por favor, diga ao Verão que não é a visita quem faz a recepção calorosa, são os anfitriões sorridentes. E se ele, Verão Sem Fim, quiser companhia viva e em forma sólida, ele, Magnífico, vai ter que diminuir a potência dos raios UV e a temperatura desse forninho-elétrico chamado Terra, codinome Inferno na Terra que podemos chamar só de Inferno mesmo.

Aceite bem essas críticas, tá bem, Poderoso. Uma hora, irá embora e vai chegar o Outono, que é mais seco. Veja bem. Ainda gosto de você. Peço somente menos alegria, menos estardalhaço. Ninguém quer o seu mal, assim como ninguém precisa ficar mal. E tem outra, você não vai ser nem abandonado nem esquecido. Nunca! Jamais! Quem te viu, viu; os que perderam, outrora ainda verão. Bem-vindo. Qualquer quantidade de protetor solar ainda não é suficiente. Não se acanhe, fique à vontade. A casa é sua. Março ainda demora a chegar.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Deu ruim

SABE O QUE DEU RUIM RECENTEMENTE? Não, não foi a colheita anual das jabuticabas que eu nem gosto e tenho que ouvir de todos: “como você não gosta de jabuticaba, menino?”. Poxa, além de não gostar, não sou mais menino. Sou no mínimo “mocinho”, aceito “jovem” e paro no “rapaz”; depois disso é tudo muito adulto. Independente disso, todo mundo diz que dessa vez elas estão mais doces e graúdas. Elas, as jabuticabas.

Uma propriedade interessante da fruta roxa e graúda é o efeito sonífero. Muitos que sofrem com insônia, aproveitam essa época do ano e se dopam com jabuticabas para dormir dignamente. Meus pais, coitados, parecem bebês gigantes. Outros, com o mesmo intuito de dormir, não por sofrerem com esse mal do sono, mas por assistirem continuamente à ruína do ser humano, têm que recorrer a esse recurso roxo. E eu? Se a jabuticaba não me apetece, deu ruim.

Ontem, por intermédio de minha companheira fiquei sabendo da existência de uma “Escola de predadores”, um curso sobre a “Arte de pegar mulher”. É o fim da picada, e o fim dos trocadilhos. De acordo com os relatos de um participante das aulas, esse curso ensina o homem a virar homem. Isso contraria imediatamente o título “Arte de pegar mulher”. Afinal, moleque pega mulher. O homem que quer se relacionar como um ser humano tem a mínima obrigação de tratar seus semelhantes bem para ser tratado bem. Ninguém pega ninguém sem a conotação de objetificação humana. Isso cansa minha mente e os meus olhos sem me deixar exausto para dormir. De todas as coisas que usurpam o meu sono, essa resolveu se destacar.

Acho que, se chegamos ao ponto de ensinar uns aos outros a sermos superficiais e objetificadores, criaturas cuja capacidade máxima se encontra na habilidade de somar a currículos do ego um número de ficadas e pegadas, a conta da raça humana, a nossa ficha criminal, com todas as porcarias um dia feitas, ou seja, guerras, preconceitos, ideais egoístas e muito mais, chegou a um ponto limite. Estou realmente preocupado com as pessoas e com os rumos. Parece careta, e mais careta ainda de uma pessoa que não ingere bebidas alcoólicas nem tem predisposição para experimentar tudo que o mundo oferece. Digo que não gosto de jabuticaba, mas nunca provei. E não sei se adianta. Não sei se a partir de agora a jabuticaba vai funcionar em todos como antes. Não sei.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

"Saldade"

HÁ SEIS MESES EU NÃO ACORDAVA COM A BOCA IMPREGNADA DE SAL. É uma sensação estranha, porém, pouco inusitada. Como disse, já acordei salgado. E vou além: pronto para ser selado com azeite e ervas, assado com batatas graúdas, posto à mesa em uma travessa comprida e devorado com talheres importados. Naquela época, causaria uma intensa indigestão; hoje, talvez fosse diferente, seria uma indigestão com um sentimento de “tem um pouco menos de sal” – graças aos meus esforços para controlar a alimentação.

Vejo muitas pessoas que lutam diariamente contra a saudade e admiro essas pessoas profundamente. Não precisa ser uma saudade da companheira ou do companheiro, pode ser aquela falta que faz aquela amiga, aquele amigo, aquele tio, aquela prima vovó vovô nêmeses peixinho abajur livro patinho de borracha lápis mordido verão março julho Júlio embrulho.

Existem momentos do dia, quando você está em uma situação plena consigo mesmo, que uma brisa diferente sacode a sua cabeça e, entrando pelos poros da pele, sem motivo aparente, chega ao sangue e você já sabe como funciona a rota do sangue. Você sabe que se ele não passar pelo coração, se não for bombeado para o seu corpo todo, você morre. Sentir saudade é ter cerca de cinco litros de sangue subindo e descendo e ingerir muito sal, prejudicando essa circulação natural ao ponto de existirem dores físicas e muitas vezes psicológicas que nos desestabilizam e ocasionalmente nos fazem expelir pelos olhos, que até então não tinham nada com isso, lágrimas-o-que? Salgadas.

Assim, sal é sal e este faz mal para o corpo quando consumido em excesso. Não adianta dizer que ficar longe de alguém um ano é mais danoso que ficar distanciar-se por um dia. Comer um quilograma de sal no almoço pode ser muito pior que comer cinco quilogramas de sal em seis meses. Como não sou médico – só acho um monte de coisas –, não vou recomendar uma dose específica e controlada para ninguém, prefiro uma dica mais simples: evite. Saudade é saudade e dói como uma artéria comprometida, como um rim que não filtra ou como um estômago embrulhado que atrapalha o funcionamento do organismo.

Eu não evito o sal à toa. São dois os motivos: o primeiro é que a minha família tem um vasto histórico de hipertensos e acho justo eu querer cuidar da minha saúde; o segundo é por que, como já disse repetidas vezes, já acordei com a boca cheia de sal outras vezes. Quando estou sozinho, não salgo a batata frita nem meus dedos em aperitivo por que eu simplesmente odeio a saldade.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Uma novela das boas

AS MINHAS ÚLTIMAS HORAS FORAM UMA VERDADEIRA NOVELA DAS OITO OU NOVE DAS BOAS. Por incrível que pareça, perdemos a escritura da nossa casa dentro da nossa própria casa. Minha família se mobilizou para acha-la e a cada envelope novo que encontrávamos, uma nova surpresa e uma nova decepção. Para ficar caricato e mais improvável, faltava somente um sambinha toda vez que alguém fazia cara de “também não está aqui”.

Enquanto eu procurava, achei pérolas e raridades que jamais havia visto: antigos bilhetinhos de amor trocados por meus pais, os boletins escolares de ambos, exames de sangue, garantias de produtos diversos o manual de uma velha máquina de lavar um guia ensinando a tirar fotografias “como um profissional” a antiga câmera fotográfica da família que supostamente tirava fotografias profissionais uma flauta e umas cartas de tempos imemoriais enviadas para diversos endereços diferentes, já que moramos em diversos endereços ao longo da vida; e nada de escritura.

Não sei como nunca perdemos outra escritura! Justo na casa atual, a que nos abriga há mais primaveras e verões, falhamos miseravelmente assim. A caça ao tesouro deu como frutos teorias sobre a casa e sobre o paradeiro da escritura: “Esse guarda-roupa tem umas fendas meio esquisitas, né? Com certeza a escritura escorregou e se enfiou numa delas. Vamos ter que desmontar o guarda-roupa. Pronto! É isso!” – minha mãe. “Não está aqui. Estamos procurando como loucos e a bendita não está aqui” – outra vez minha mãe. “Nunca existiu uma escritura!” – pela terceira vez minha mãe. “Amanhã a gente procura isso direito” – meu pai. “Ou quando não estivermos procurando a escritura aparece” – encerrou sabiamente as explorações, minha mãe.

Ainda bem que estávamos procurando a escritura por um motivo razoável e não por vingança ou por disputar uma herança. Às vezes a vida vira uma novela e permanece com o gosto de sobriedade e de realidade, por que às vezes é bom viver o que as atrizes e os atores fazem parecer tão distante. Para quem diz que a arte imita a vida e a vida imita a arte, um abraço e um beijo molhado da TV aberta, onde a arte imita a arte e a vida imita a vida. 

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Vida no colchão

TALVEZ NINGUÉM TENHA PENSADO NA GRANDE METÁFORA EXISTENTE NO LAÇO ENTRE O SER HUMANO E O SEU COLCHÃO. Eu pensei. Não sou nenhum filósofo, assim como não me dou o direito de citar algum. Não conheço bem nenhum e não tenho envergadura moral para mentir sobre Filosofia. Enfim, querendo ou não, eu – não-filósofo – pensei em algo muito maior que o meu ser ou não ser ao ver um amontoado de colchões macios e carentes.

É sabido que despertar é nascer e que dormir é morrer, mas a vida tem muito mais que isso, a vida tem muito mais do que clichês encontrados em biscoitos chineses que nunca comi. É possível encontrar tanta diversão em um colchão, tanto carinho; isso acontece da criancice à velhice, da eloquência de uma dissertação sobre os problemas do Brasil à chatice de estar com a perna quebrada que eu nunca quebrei como todo garoto normal. Eu, quando pequeno, construí fortes intransponíveis feitos de inofensivos e confortáveis colchões. Fiz escorregadores e inclusive me envolvi em um acidente sangrento por causa disso – uma história de outros carnavais. 

Quando adolescente, descobri que o colchão escuta os meus pensamentos e mesmo à companhia do travesseiro nunca espalhou meus segredos. Meu colchão nunca julgou paixões. Nunca reclamou se eu dormi de pijamas ou nu. 

Hoje, aos dez e oito, sei que ele é solitário e precisa de um corpo para se aquecer, por que a química universal decidiu que não existe troca de calor entre o lençol e a cama. Sei que ele gosta tanto de companhia que aceita, tranquilamente, o papel de terceiro membro do ménage se o cobertor, o lençol e o travesseiro forem considerados acessórios. O colchão geme e você nem tinha reparado. E eu pensei ao ver um monte de camas desarrumadas. 

Os colchões vão ser também o abrigo dos doentes. O mesmo que se divertiu com você, em algum momento vai sofrer te acompanhando na velhice. E se você já tiver trocado de cama, receberá o mesmo suporte. Fodam-se os cães e três vivas para os colchões: verdadeiros melhores amigos do homem.

Pois bem. Devemos dedicar aos nossos colchões, aquele um terço de vida dormida. Aquele um terço de vida sonhada. Companheirismo! O colchão, objeto peculiar que varia em tamanhos, tipos, cores, idades, preços e tudo, muda pouco se posto ao lado de seu companheiro. E sabe qual é o motivo? Simples: o colchão somos nós. Se estamos sozinhos, ele é solteiro. Se estamos acompanhados, ou faz um esforço e aguenta os pombinhos ou é casal.  Assim, ao invés de perguntar para alguém: “Quer casar comigo?”  pergunte: “Quer dividir um colchão comigo?”. 

Uma vida, muitas aventuras. Obrigado, colchão.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

No bar

EXISTE ALGUM LUGAR MAIS DOCE E PROPÍCIO NESTE MUNDO PARA SER ANTRO DE DISCUSSÕES FILOSÓFICAS ACALORADAS E DISSIMULANTES QUE UM BAR? O som de bossa nova escorrendo dos alto-falantes velhos, de segunda mão; o cheiro de óleo de ontem e de batata sendo frita desde ontem; as lâmpadas sempre forçadas a trabalhar à meia-luz a brisa da noite que atinge em cheio o segundo andar o movimento das garçonetes e dos garçons as cantadas as contra-cantadas os tapas na cara os beijos os clientes conversando cada vez mais alto e mais alto numa disputa com a bossa nova que suprime o cheiro d’óleo mas não ameniza tom etílico das palavras proferidas pelos Poetas, Filósofos e Antropólogos ali presentes.

Ah, foi num Bar que conheci meu novo amigo que não é crítico literário, não é universitário, não é cabeça-dura, porém é. Meu amigo, além de tudo que pôde, pode ou poderá ser, é um apaixonado. A paixão dele chega a ser doentia, obsessiva. Mas o que nessa vida duvidosa é são? Só por que eu não bebo sou mais sóbrio que os pinguços? Não vou negar meu apreço pela minha sobriedade, porém, não sei o que é sobriedade para os outros. Não sei qual é o seu estado pleno de paz. A única coisa que sei é que tenho um amigo apaixonado.

Aprendi muito com ele. Fui paciente. Fui honesto. E principalmente, fui mais ouvinte que falante. Deixei a prosa com ele para depois contar sobre ele em prosa. Eu comentava os dizeres, é claro, mas praticamente só balançava a cabeça concordando ou discordando.

Estávamos em pé, com outras pessoas, mas, por algum motivo, eu me tornei o centro das atenções. O rumo da conversa foi direcionado ao meu eu escritor e me senti como o eu lírico em uma poesia: tenso; “a qualquer momento, o Poeta pode me matar”. Repito que não bebo e não bebi nenhuma gota do produto dourado que não é urina, mas faz urinar. Tudo o que fiz foi aprender e me soltar de pouco em pouco. Fiquei confortável e cada vez mais apto a trocar minha sobriedade pelo sabor de uma bebida nova. Essa bebida, que agora carrego debaixo do baixo, para cima e para braço, é o conhecimento extenso que agreguei naquela mesa de bar. Foram horas felizes de conversa. Quatro pessoas começaram suas dissertações sobre a vida e quatro pessoas engrandecidas terminaram diferentes e, julgo eu, melhores.

No Bar, dá para ficar tonto sem se embebedar. No Bar, dá para soluçar poesia, arrotar epopeias e reclamar das ressacas que passaram e das que hão... de... passar... No Bar.



sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Não seja ganancios@

SEJA EM HISTÓRIAS DE PESSOAS DESCONHECIDAS OU EM TRECHOS DE MÚSICA, A GANÂNCIA EXISTE PARA NOS DERRUBAR. Você já deve ter esbarrado com a ambição e confundido com a irmã, Ganância. Contudo, deve ficar clara a diferença entre uma e outra.

A Ambição pode ser ruim às vezes, mas se você é ambicioso no sentido de estar sempre crescendo, sem atrapalhar o crescimento das outras pessoas, continue assim. Já a quase-gêmea é ardilosa. Você não precisa de alguma coisa. Você está satisfeito e continuará satisfeito, só que - vou tomar de empréstimo uma expressão muito usada por minha mãe - ficou com os olhos maiores que a barriga. Ah, isso é uma senhora armadilha e deixo bem claro que não é uma arapuca para pegar mulher casada, não mesmo. Pois então, tudo isso foi para eu preparar o terreno e afirmar com todas as letras: eu fui ganancioso. 

Não me orgulho, porém fui humilde o suficiente para admitir que fiz a coisa errada, correto? Esse é o primeiro passo. Na hora do almoço, tenho o direito de comer um doce dos dois ofertados no Restaurante Setorial, a.k.a Bandejão, da universidade. E eu dobrei minha índole. Isso mesmo. Eu peguei dois. Olhei para um lado e para o outro e mesmo cercado de testemunhas fui discreto o suficiente para usurpar do direito de alguém para me beneficiar com mais açúcar (para ficar claro, peguei dois docinhos iguais).

É claro que no final, levei uma rasteira da Karminha. Cheguei em casa e fiquei um bom tempo no banheiro pagando por minha ganância. A desidratação e o sentimento de não vou fazer isso de novo chegaram à galope e minutos depois eu estava sentado escrevendo uma crônica sobre isso. Moral da história: evite ser ganancioso. Se eu tivesse tido a ambição de pegar dois doces para vendê-los tudo teria terminado bem.

domingo, 16 de novembro de 2014

É, agora não tem volta

ÀS VEZES NOS DEPARAMOS COM COISAS ASSUSTADORAS DEMAIS PARA SER VERDADE. Só que essas coisas existem e fazem questão de dizer em alto e bom som: “Ei, sou de verdade”. Refiro-me às pessoas ao nosso redor. Quem diria que eu, outrora um moleque sem pretensões para com a dona Vida, cresceria e me enxergaria grande como os que perambulam ao meu redor. Quem diria que eu olharia para crianças e adolescentes e os reconheceria como crianças e adolescentes. Eu não sou mais, pelo menos no que recheia o meu ego, o bebê da mamãe. Sou agora o bebê que vai chorar se for demitido, o bebê que vai chorar se perder a chave do carro, o bebê que já pode ser preso mesmo sem ter cometido um crime, afinal, a Vida tem dessas coisas. E sinceramente, do jeito que essa anda apaixonada comigo, envelhecendo-me dia após dia, música após música, dando-me presentes gregos como rugas e dores nas costas, já sei que não tem mais volta. Não adianta pensar que ontem eu não tinha barba ou que meu pai puxou a minha orelha por que respondi mal a um senhor de idade. Resta esperar que uma garota ou um garoto me trate com falta de respeito para eu poder observar, com um rosto senil, uma mamãe ou um papai puxando a orelha desta criança, que estava só fazendo o papel dela de não ir com a cara de velhos estranhos.

Ai, como dói não ter a orelha puxada. Como sinto falta de pular amarelinha na chuva, ou de arrumar a cama por dinheiro, ou escorregar no morro gramado ao lado da capela perto da minha casa esconder debaixo da maca para não ter que tirar sangue comer e não engordar correr e não cansar apanhar para não ficar de castigo ficar de castigo para não apanhar.

Por outro lado – mais especificamente o lado bom de ser grande –, estou realizando sonhos de criança. Já faço a barba, moro sozinho, fico de pijama o dia todo sempre que possível, durmo bem tarde e outras coisas mais. Tenho carteira de motorista (que alguns chamam de carta), envio cartas de amor (que alguns chamam de carteiras), trabalho com o que gosto, escrevo melhor, converso melhor, escuto melhor, expresso-me.

Tudo bem, sinto-me menos mal, menos velho do que finjo ser. Mas ainda não acostumei-me com a ideia de ver outros adultos como semelhantes. Espero que não leve muito tempo para assimilar isso, afinal, quero poder experimentar esse estranhamento quando for um idoso também. E por fim, quando for um presunto.